sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O Novíssimo Testamento

"Deus é um tirano, que criou a humanidade para se divertir atormentando-a sem cessar"
(Clichê. Lugar-comum. Conte outra)
"Deus mora em Bruxelas, é um desmazelado rabugento de roupão & pijama que controla a criação via computador"
(Quêêê, como assim???)
"Deus é um grosseirão sempre mal-humorado, que tiraniza a esposa, nutre ressentimento pelo filho que saiu de casa, e maltrata a filha de 10 anos, que não o suporta mais"
(???!!!???)
"Deus acorda um dia para descobrir que a filha fugiu para o mundo, mandou SMS para todas as pessoas informando exatamente quanto tempo terão de vida, e está recrutando novos apóstolos para escrever o Novíssimo Testamento e refazer o mundo numa versão melhorada"
(.......colapso total.........)
É a reação de quem for ao cinema despreparado para a obra de Jaco van Dormael, o diretor belga a quem a Inspiração tocou de modo tão fulminante - não consigo imaginar o público evangélico assistindo isso sem que suas cabeças explodam de tanta heresia junta...
A premissa central do filme é interessantíssima: como o próprio Deus diz em certa altura, as pessoas se apegam a ele e tentam não desobedecê-lo porque não sabem quando e como vão morrer, então a revelação deste dado crucial acaba libertando-as desse jugo - já que vão morrer numa data prefixada, e não há o que fazer para mudar isso, porque não assumir o controle de suas vidas e escolher livremente o que fazer com o tempo que lhes resta?
O filme se detém nas vidas dos seis escolhidos por Ea, a filha de Deus, para serem os novos apóstolos: vidas tristes e vazias, e no entanto narradas com tanta sensibilidade e compaixão (um deles é "o Assassino" e outro "o Tarado", mas não há como deixar de amá-los depois de os conhecer de perto) que acabam por quase eclipsar o fundo sobrenatural do filme, e é pelo olhar de Ea que essa sensibilidade se expressa.
Deus, pelo contrário, não tem nenhum traço que o redima - indo ao mundo atrás da filha extraviada, trata tudo e todos como o pequeno tirano doméstico que realmente é, e obviamente o mundo e as pessoas retribuem à altura: todas as mesquinhas leis criadas por ele mesmo para atormentar os humanos voltam-se contra ele sem dó, ele sente na carne o que significa ser humano no mundo distópico que criou (exatamente como seu filho rebelde, JC, que por isso mesmo rompeu com o pai), mas não aprende nada com isso.
O segredo do filme, no entanto, está na submissa esposa de Deus: ela tem um passado, e no ponto crítico da história é ela quem faz o que precisa ser feito (os Pagãos que assistirem vão adorar!)
Não sei se foi de propósito, mas essa comédia belga despretensiosa acaba sendo, para quem tem olhos-de-Druida, um retrato extremamente acurado do panorama religioso contemporâneo, e só por isso já merece ser sucesso de público.
E tem Catherine Deneuve.
VÃO VER!!!

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