domingo, 28 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 12: Locais de Culto

Assim como a semana passada coincidiu com datas importantes do culto de Endovélico, esta semana abre com o dia dedicado ao Arcanjo Miguel, que é justamente o onomástico do santuário mais conhecido e arqueologicamente explorado do nosso deus, a colina de São Miguel da Mota, no Alandroal:


-- esse santuário é, ao que parece, puramente romano, sem evidências de um culto nativo original; as escavações ainda encontram fragmentos de mármore de excelente qualidade, o qual foi sendo removido do santuário ao longo dos séculos pós-cristianização (o Mosteiro dos Agostinhos, em Vila Viçosa, a igreja da Senhora da Boa Nova entre tantos, e o Liceu de Évora teria recebido as próprias colunas do templo).
Próximo dali, e banhado pelas mesmas águas do rio misteriosamente chamado Lucefecit, acima retratado, está o que os pesquisadores pensam ser o santuário original do deus, na colina pedregosa de Rocha da Mina:


degraus cavados na rocha, terraços esboçados, e a recente descoberta de habitações no local apontam para o que era uma comunidade viva e florescente de aldeões e sacerdotes, sustentados pela caça e coleta nos bosques e a pesca no rio, com abundância de água provinda deste e da fonte que deu nome ao local (e que, não surpreendentemente, é considerada como tendo propriedades curativas).
Como disse antes, alguns autores consideram que Endovélico teria sido cultuado em Panóias, ao norte de Portugal:


(curiosamente longe dos santuários conhecidos, embora também seja curioso que a arquitetura de Rocha da Mina seja característica do norte, e não do Alentejo), como sendo uma das divindades dos povos da região, os Lapitae, que "cultuavam a serpente e o javali" (!!!), e sincretizado com o romano-egípcio Serápis, também curador, mas em Panóias ostentando um aspecto ctônico e sendo cultuado lado a lado com os Severos (como eles chamavam as divindades infernais) -- eu não levava a hipótese de Panóias a sério até fazer a pesquisa desta semana, mas após ter lido o que transcrevi acima, estou me convencendo...
E aqueles de nós, a imensa maioria, vivendo longe dos santuários, como fazemos o nosso culto?


Simplesmente criando Altares domésticos, com as imagens e símbolos adequados, e que, após a devida consagração e as primeiras oferendas, se tornam locais de culto adequados ao "presentíssimo e prestativíssimo", onde ele concede de bom grado seus dons.


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 11: Festivais, Dias Santos, Épocas

A sincronia que me fez iniciar as 30 Semanas Devocionais no começo de julho me leva a, na semana das datas consagradas, escrever isto no dia do Equinócio da Primavera, exatos seis meses depois do Equinócio de Outono, que, como já vimos, marca a descida de Endovélico ao Mundo Profundo e sua transformação em Enobólico, o Muito Negro, regendo os mortos ao lado de Ategina, que desceu às profundezas procurando por ele; hoje, ambos ascendem do abismo para trazer a Vida e a Luz de volta ao mundo dos vivos, e tudo o que vive recebe suas bênçãos nesta estação.
Além dos Equinócios, celebrados na Bruxaria Ibérica, os modernos cultuadores do deus celebram seu dia nas proximidades do Solstício de Verão, sintonizados mais com o seu lado solar/luminoso, e é essa temporada que testemunha as comemorações religiosas, acadêmicas e turísticas a ele dedicadas no Alandroal e em Rocha da Mina.
Como já disse, eu cultuo nove Divindades numa "semana" de nove dias, e o próximo dia dele será nesta quarta, 24/9 -- isso significa que estou iniciando um ciclo de 3 dias começando hoje, colhendo amoras pela manhã e fazendo o rito equinocial à noite, saudando Endovélico e Ategina retornados no alvorecer da terça, e celebrando o dia sagrado dele na quarta de manhã e à noite (se tudo correr bem, incubando sonhos enviados por ele).
Nenhuma destas datas, volto a dizer, é atestada historicamente como sendo do culto original de Endovélico, mas quem tentar pelo menos uma libação de vinho e uma oração a ele esta noite terá algumas surpresas...


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 10: Oferendas

Esta é uma das semanas em que eu poderia falar do tema em um parágrafo e o resto seria para encher linguiça, mas o tema parte de pressupostos e leva a consequências que merecem uma discussão mais extensa.
Começando pela questão mais imediata: porque fazemos oferendas de comidas e outros itens materiais aos Deuses, isso não é primitivo demais? Essa pergunta é bastante comum, não só fora das fés pagãs como no seio delas, e para responder a isso seria bom olharmos a sequência das versões da Liturgia da ADF -- no início a ênfase era em oferendas imateriais, geralmente música, canto ou poesia, sendo a resposta emocional dos participantes do rito às performances dos ofertantes parte essencial da oferenda, mas com o tempo a prioridade passou às oferendas materiais, e a declaração de membros da ADF a respeito mencionava várias razões para essa escolha: um afastamento deliberado da "imaterialidade" associada à espiritualidade judaico-cristã, antecedentes históricos e arqueológicos de oferendas em rios e lagos, e uma declaração enfática do valor intrínseco e sacralidade do mundo material e tudo o que ele contém. Claro, não é a substância material em si que Deuses, Ancestrais e Espíritos da Natureza levam da oferenda, mas a sua contraparte anímico-energética, juntamente com a devoção associada ao ato físico da oferenda.
A outra pergunta que surge desta é a seguinte: os Deuses necessitam receber oferendas, há uma carência neles que a oferenda preenche? Se assim fosse, eles teriam todos perecido quando seus cultos foram terminados pelo monoteísmo predatório, o que não foi em absoluto o que ocorreu, como qualquer politeísta moderno pode confirmar -- a função da oferenda é exatamente a mesma de uma ou mais pizzas numa mesa cheia de amigos: uma troca de energia e presentes, um reforço dos laços de amizade, um pretexto para os participantes desses laços sentarem juntos em alegria. Nós não a vemos como um dízimo a ser pago, ou pior, como um jeito de comprar o favor divino e forçá-lo a acontecer em troca do que foi ofertado, como tantas igrejas modernas blasfemamente afirmam a seus rebanhos.
Quando ofereço folhas de louro, uvas, pão preto, vinho ou carne de porco a Endovélico, eu o faço em sinal de gratidão pelas boas coisas da minha vida, que não são poucas, com oferendas especiais a cada nove dias da minha semana ritual (ontem, dia da I Conferência Paulista de Druidismo e RC, foi um desses dias), sem me sentir aviltado ao pagar tributo nem aviltar meu padroeiro ao comprá-lo com minhas ofertas, mas como companheiros partilhando um banquete: "tome, é todo seu".


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 9: Concepções Errôneas

Em se tratando de uma Divindade arcaica, enfiada à força dentro da moldura estreita da interpretatio romana, demonizada ao esquecimento pela Cristandade, sem mais que altares e imagens dispersas em santuários isolados atestando sua existência, e redescoberta tardiamente num mundo que já não vive a cosmovisão da sua cultura nativa, é de se esperar que acidentes de percurso tenham ocorrido, e que muitas idéias erradas, antigas e modernas, tenham se formado sobre ela, seu culto e natureza.
Começando pelas antigas, os historiadores portugueses do século XVI-XVII, em especial frei Bernardo de Brito e frei Martinho de São Paulo, citando um tal de Pedro Aládio (um cronista romano que só aparece nas obras de frei Bernardo, muito provavelmente fictício), sincretizam Endovélico com ninguém senão Cupido (!), e dizem que seu santuário em Vila Viçosa (que não existe lá) teria sido fundado por Maharbal, conquistador cartaginês, e nele a imagem do deus era feita de prata pura, retratando-o como tendo "olhos fechados, um coração sobre a boca, e pés alados", supostamente copiando uma imagem mais antiga em Chipre -- os historiadores atuais atribuem esse sincretismo com Cupido (ou Amor, como os romanos e os medievais costumavam chamá-lo) às esculturas de crianças aladas portando tochas, encontradas em São Miguel da Mota, e que possivelmente seriam associadas ao culto do aspecto Psicopompo de Endovélico.
Dos enganos modernos, um é ainda bastante comum -- centenas de sites descrevem Endovélico como sendo "o principal deus do panteão lusitano", mas já vimos que esse panteão nunca existiu de forma unificada e trans-tribal, e que ele não é o principal, mas apenas o mais atestado arqueológicamente e mais popular no imaginário pagão moderno, o que lhe deu um destaque totalmente desproporcional ao seu status original -- o outro engano, felizmente, parece estar desaparecendo aos poucos: há dez anos, uma pesquisa em sites de busca sobre Endovélico quase que só mostrava ou blogs de movimentos ultranacionalistas, de tipo xenófobo-extrema-direita, ou clipes de uma banda skinhead portuguesa, criadores de um subgênero chamado "hatecore", e toda essa corja tinha a hubris de dizer que Endovélico era um deus exclusivo de lusitanos puro-sangue, e que todos os outros eram indignos de seu culto e por ele odiados e desprezados; hoje, a mesma pesquisa na Internet mostra todo o renascimento do "culto endovélico", incluindo os eventos anuais do Concelho do Alandroal,  ou o site-database dos arqueólogos portugueses, ou a recente peregrinação da Confissão Wicca Celtibera ao santuário do deus, ou artigos de revistas arqueológicas, ou até, vejam só, este blog...
Devo dizer, para encerrar a discussão, que estou ciente que algumas, ou muitas, ou todas as minhas intuições sobre a natureza e o culto de Endovélico podem estar tão erradas quanto os três exemplos que dei, e que no futuro rirão de mim como do frei Bernardo de Brito, e com a mesma razão; a diferença é que eu sei distinguir o que é sabido do que é suposto, e não tento passar um pelo outro, e ao procurar preencher lacunas minhas fontes provém da história, arqueologia e mitologia comparada, e são sempre vistas como provisórias, o melhor possível nas circunstâncias atuais, e sujeitas a revisão se novos fatos surgirem; esse cuidado, que partilho com meus amigos no Reconstrucionismo Celta, é o que pode nos salvar de enganos que, além de nos confundir e aos que nos lêem, também ofendem as Divindades ao retratá-las como algo que não são.


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 8: Aspectos e Variações

Esta semana, vamos olhar com mais detalhes os três aspectos de Endovélico já esboçados nas semanas anteriores...
Para começar com o Oráculo, notem que ele foi sincretizado com Esculápio -- e não com Apolo, como seria o procedimento-padrão da interpretatio romana para uma Divindade estrangeira associada à cura-- e a razão disto é simples: ambos são Deuses da cura, e ambos também são Divindades oraculares, mas a diferença crucial entre os dois é que o oráculo de Apolo é do tipo "mediúnico", onde a Pitonisa em transe fala pelo deus, enquanto o de Esculápio é "oniromãntico", ou seja, os devotos sonham com o deus ao dormir em seu santuário, e ao acordar interpretam seus sonhos sozinhos ou com ajuda dos sacerdotes; no segundo caso o contato do fiel com a Divindade é direto, sem intermediários, e depende de um esforço ativo do consulente em se preparar (via regimes austeros, orações e meditação) para incubar o estado onírico onde o deus pode se aproximar e comunicar seus oráculos; como já vimos, J. Leite Vasconcelos considerou que os remanescentes do santuário de Rocha da Mina sugerem que uma das cãmaras poderia ser onde os devotos praticavam a incubação de sonhos, pela arquitetura similar à dos santuários de Asclépio em Epidauro e de Nodens em Lydney Park. A imagem do devoto, deitado aos pés da imagem do deus, cabeça a nível do chão como que tentando ouvir a voz das profundezas, logo traz à mente o EX IMPERATO AVERNO que comentamos semana passada, a mensagem que emanou das profundezas e alcançou a mente do devoto, suspensa entre a vigília e o sono profundo, em forma de sonho.
O Curador, como vimos, está estreitamente associado ao Oráculo, desde que a principal razão pela qual se buscava sua orientação era saber o que fazer para se curar -- minha intuição, no entanto, me diz que no caso de Endovélico aconteceu o mesmo que com Asclépio (a forma Grega de Esculápio): os ex-votos mais antigos em seu santuário de Epidauro descrevem o deus aparecendo durante o sonho do fiel, que desperta já plenamente curado, enquanto numa etapa posterior o deus orienta em sonho o fiel sobre como se curar sozinho, e na fase final o sonho se torna uma receita densamente simbólica que os sacerdotes interpretavam para aí prescrever um esquema terapêutico ao fiel; um lento processo de afastamento da Divindade ao longo de séculos, talvez?
O Guia/Senhor dos Mortos é mais obscuro, como as Divindades ctônicas tendem a ser (e é digno de nota que a interpretatio não cogitou associá-lo com o Hermes Cthonios (Guia das Almas) ou Hades/Plutão (Senhor dos Mortos)) -- mas, lendo o mito esculapiano, vemos que a ele foi pedido que ressuscitasse os mortos, o que ele fez (em algumas versões por dinheiro, em outras simplesmente porque podia), ao que Hades protesta pela violação de seus domínios e Zeus, em resposta, fulmina Asclépio com um raio: é difícil ler isso e não lembrar do mito Irlandês de Diancecht e seu filho Miach, que em certo ponto "revive" a mão morte e decepada do rei Nuada, sendo ferido de morte por seu pai e se curando vezes seguidas dos golpes, até ser finalmente morto e enterrado -- em ambos os mitos Irlandês e Grego (e certamente no Celtibérico) o tema da tentação do Curador para violar as leis naturais e negar à Morte um lugar na ordem das coisas está bem atestado, e voltaremos a ele em semanas posteriores.
O que há em comum entre os três aspectos do deus é o que os antropólogos chamam de liminaridade, ou seja, a mediação entre estados, condições ou reinos opostos -- o Oráculo do Sonho entre vigília e sono profundo, o Curador da Doença entre saúde e morte, e o Guia das Almas entre este mundo e o Outro-Mundo -- e é bom notar que cada aspecto é tanto solar como ctônico, em graus diferentes, e que há uma certa interpenetração de papéis entre os três: foi por isto que escolhi a imagem acima para esta semana, onde cada cor/aspecto traz em si uma segunda cor e avança em direção a uma terceira, formando um todo fluido e complexo que, para mim, simboliza muito precisamente a natureza de Endovélico.