segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Endovélico, Semana 9: Concepções Errôneas

Em se tratando de uma Divindade arcaica, enfiada à força dentro da moldura estreita da interpretatio romana, demonizada ao esquecimento pela Cristandade, sem mais que altares e imagens dispersas em santuários isolados atestando sua existência, e redescoberta tardiamente num mundo que já não vive a cosmovisão da sua cultura nativa, é de se esperar que acidentes de percurso tenham ocorrido, e que muitas idéias erradas, antigas e modernas, tenham se formado sobre ela, seu culto e natureza.
Começando pelas antigas, os historiadores portugueses do século XVI-XVII, em especial frei Bernardo de Brito e frei Martinho de São Paulo, citando um tal de Pedro Aládio (um cronista romano que só aparece nas obras de frei Bernardo, muito provavelmente fictício), sincretizam Endovélico com ninguém senão Cupido (!), e dizem que seu santuário em Vila Viçosa (que não existe lá) teria sido fundado por Maharbal, conquistador cartaginês, e nele a imagem do deus era feita de prata pura, retratando-o como tendo "olhos fechados, um coração sobre a boca, e pés alados", supostamente copiando uma imagem mais antiga em Chipre -- os historiadores atuais atribuem esse sincretismo com Cupido (ou Amor, como os romanos e os medievais costumavam chamá-lo) às esculturas de crianças aladas portando tochas, encontradas em São Miguel da Mota, e que possivelmente seriam associadas ao culto do aspecto Psicopompo de Endovélico.
Dos enganos modernos, um é ainda bastante comum -- centenas de sites descrevem Endovélico como sendo "o principal deus do panteão lusitano", mas já vimos que esse panteão nunca existiu de forma unificada e trans-tribal, e que ele não é o principal, mas apenas o mais atestado arqueológicamente e mais popular no imaginário pagão moderno, o que lhe deu um destaque totalmente desproporcional ao seu status original -- o outro engano, felizmente, parece estar desaparecendo aos poucos: há dez anos, uma pesquisa em sites de busca sobre Endovélico quase que só mostrava ou blogs de movimentos ultranacionalistas, de tipo xenófobo-extrema-direita, ou clipes de uma banda skinhead portuguesa, criadores de um subgênero chamado "hatecore", e toda essa corja tinha a hubris de dizer que Endovélico era um deus exclusivo de lusitanos puro-sangue, e que todos os outros eram indignos de seu culto e por ele odiados e desprezados; hoje, a mesma pesquisa na Internet mostra todo o renascimento do "culto endovélico", incluindo os eventos anuais do Concelho do Alandroal,  ou o site-database dos arqueólogos portugueses, ou a recente peregrinação da Confissão Wicca Celtibera ao santuário do deus, ou artigos de revistas arqueológicas, ou até, vejam só, este blog...
Devo dizer, para encerrar a discussão, que estou ciente que algumas, ou muitas, ou todas as minhas intuições sobre a natureza e o culto de Endovélico podem estar tão erradas quanto os três exemplos que dei, e que no futuro rirão de mim como do frei Bernardo de Brito, e com a mesma razão; a diferença é que eu sei distinguir o que é sabido do que é suposto, e não tento passar um pelo outro, e ao procurar preencher lacunas minhas fontes provém da história, arqueologia e mitologia comparada, e são sempre vistas como provisórias, o melhor possível nas circunstâncias atuais, e sujeitas a revisão se novos fatos surgirem; esse cuidado, que partilho com meus amigos no Reconstrucionismo Celta, é o que pode nos salvar de enganos que, além de nos confundir e aos que nos lêem, também ofendem as Divindades ao retratá-las como algo que não são.


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